sábado, 22 de janeiro de 2011

Chuva e não


Chuva e não (II)
Sidney Wanderley

Há dias em que chove poesia.
Dias em que pinga.
Dias em que não.

Cautela para os primeiros.
Atenção para os segundos.
Dos últimos, o áspero
aprendizado do silêncio,
a dura ração da recusa.

Alheios a chuva e poesia,
os dias prosseguirão.

Sidney Wanderley.
Poeta alagoano; nasceu no município de Viçosa
em outubro de 1951. Professor de Biologia.
Publicou vários livros, entre eles:
Poemas post-húmus (1991); Nesta calçada (1995); Quisera ter a beleza que (1997); De Riacho do Meio a Viçosa de Alagoas (1998); Na Pele do Lago (1999); Desde Sempre (2000); Três Vozes Nordestinas (2001); Entropia (2004); Chuva e não (2009)

______
WANDERLEY, Sidney. Chuva e não. Maceió: Catavento, 2009.
Foto:Sidney Wanderley

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Semideuses


Semideuses
.Fernando Pessoa em seu poema, ou melhor, Álvaro Campos, um de seus heterônimos, insatisfeito e sincero explodiu: - Só eu sou ignorante, desprezível, inconstante e vil,
Todos os outros-desabafou, irônico- são capacitados, seguros e perfeitos!

Mas, contendo seu repúdio, não ousou espernear, de fato, diante da multidão engomada de hipócritas e demagogos da ambiência na qual vivia. E com a astúcia de um poeta, calou-se por hora, para dar voz ao personagem, que expôs de forma explícita mas poética, a própria raiva que sentia pela vida.

Eu, todavia, sigo em passos lentos de aprendiz, dando voz ao papel impassível, que exporá meus pensamentos de inconformismo e levará com elegância minha denúncia. E por meio dele, deito e rolo; grito e esperneio; protesto com o dedo em riste contra todos em cuja cabeça lhes couber este chapéu. O chapéu da altivez, da arrogância, da presunção de sentirem-se deuses, desprezando e humilhando todos que se apeguem ao direito de serem, simplesmente, seres humanos. Pretensos deuses que infestam nossa sociedade e entronizam-se em nosso meio independentemente da classe social. Espalham-se como praga arruinando todo lugar por onde passam, e contaminam com rapidez os bons costumes, deixando seus vírus nas mentes pequenas, que, aos poucos manifestam os sintomas: sorriso amarelo, olhar frio, peito estufado, andar altivo, nariz empinado, fala áspera e muito medo de se aproximar do próximo.

Com o passar do tempo, essa doença chamada arrogância, vai se enraizando no coração do homem até gerar um mal terrível conhecido por ego que, se cresce, atrofia a mente e seca a alma. E nesse estágio, o ser humano não consegue mais viver no meio da sociedade comum. Ele isola-se do resto do mundo, incapaz de comunicar-se com alguém, porque o ego é uma doença degradante que deixa o cidadão surdo, cego e demente!

Supostos representantes divinos que infestam nossos templos e envergonham os que reconhecem nossa condição de reles mortais. Enchem o peito de vanglória como quem enche o pulmão de ar, e sem piedade arranca de nós o direito de manquejar, titubear, fraquejar, temer e tremer. Tiram-nos o direito de ser o que somos: pó e nada mais...

Deuses! Que piada! Não passam de meros humanos derrotados e trêmulos diante da falta de coragem de admitir suas fraquezas.
Coragem é isso!-diga aí Álvaro Campos; Fernandos e Pessoas; os inconformados e saturados com tanta hipocrisia. Digam aí medrosos, imperfeitos, fracos assumidos, valentes seres humanos que dão a cara á tapa, mas não forjam a verdade: NEM TODOS SABEM SER SERES HUMANOS!

Daí esse mundo decaído e feiamente frio... Um mundo cheio de mortos que pensam estar vivos; ossos e peles que andam em círculos, absortos e indiferentes por não possuírem alma. Pessoas de todos os cantos de sentimentos embutidos e mascarados; gente que chora ás escondidas pra que não lhe vejam os olhos inchados; gente que morre engasgada, mas nega-se á cuspir as mágoas que a sufoca; gente que prefere a ilusão de um sorriso á uma lágrima sincera; que se conforma com tapinha nas costas mas não encara um abraço amigo; gente que vive num mundo onde prêmio é garantido á quem melhor atua; num mundo onde não se vive, se representa; num mundo de gente que tem vergonha de ser gente.

Desejo um mundo onde os seres humanos parem de exigir dos outros o que não são. Um mundo que me aceite com todas as minhas imperfeições e não espere de mim o que não posso dar; um mundo que me deixe ser apenas eu, e me livre do fardo da perfeição.
Quero um mundo onde eu possa chorar sem ser criticado, falar sem ser julgado, chutar o balde sem ser recriminado, abrir o coração sem ser descriminado, usar o livre-arbítrio sem ser reprimido, seguir a minha vida sem ser constantemente cobrado.

Detesto me sentir um patinho feio, uma formiga fora do formigueiro, um peregrino sem pátria, um extraterrestre no planeta onde nasci.
A terra precisa voltar a ser a morada dos homens e deixar de ser a morada dos deuses. O mundo clama por homens, a Igreja clama por homens, Deus clama por homens !
Não temos mais amigos, porque cada um se julga perfeito demais para suportar as fraquezas do outro; forte demais pra aturar os fracos; sábios demais pra se juntar a pecadores...
E assim, os clubes se esvaziam, as escolas diminuem as turmas, as igrejas agregam mais bancos que gente, e ohomem vai ficando cada vez mais só.

Vivemos num mundo intolerante e impaciente, onde cada qual vê o outro como concorrente. Um mundo onde cada pessoa abarca o que lhe convém e vê todo o resto como supérfluo e sem valor algum; e nesse resto, infelizmente, vão centenas de seres humanos que a desumanidade joga no lixo da sua estupidez.

Pobres tolos! Tomam nossos púlpitos como arautos divinos com o coração repleto de soberba e vazio de Deus. Usam a Bíblia para abrir os olhos de seus ouvintes, quando os próprios não enxergam a verdade. Repugnam a fraqueza humana sem ao menos se dar conta que ela é a chave para o poder de Deus se fazer perfeito.
Rejeitar a fraqueza é despir-se da humanidade. E, se Deus quisesse trabalhar com seres poderosos, certamente teria recrutado seus anjos, no entanto, Ele preferiu aos homens. –Meu poder-esclareceu a Paulo- se aperfeiçoa na fraqueza.

Ao homem foi-lhe imposto um limite e quem tentar transpô-lo há de cair vencido.
O ser humano não consegue carregar o próprio fardo da humanidade, tentar ser Deus, acredite, dá muito mais trabalho.

Leila Castanha
______
Imagem: Hércules juntando duas colunas: A união do mundo. Do artista e antropólogo espanhol Ginés Serrán Pagán.

SALVE, SALVE-NOS!


SALVE, SALVE-NOS!
.
Creio que não sou a única a reparar que nossos compatriotas mal sabem cantar o hino nacional brasileiro. Pensei por décadas que era puro desinteresse de uma gente sem apego algum a pátria que o acolheu.
Até que um dia, ao tentar eu mesma, cantar de forma racional o nosso hino pátrio, ocorreu-me que o motivo veraz pelo qual muitos não o conhecem é por não compreenderem seu significado.
O extensivo uso de hipérbato, por exemplo, contribui, com certeza, para que grande número de mentes simples cante sem qualquer encanto: “Ouviram do Ipiranga ás margens plácidas de um povo heróico o brado retumbante” , quando, talvez, vissem algum sentido se cantassem mais diretamente: “às margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heróico”. Não que isso fizesse muita diferença, mas pelo menos, falaríamos um português ao nível nacional.
Contudo, devo salientar que este não é o único “caroço” encontrado em nosso hino. Na verdade, as letras mais inteligíveis nos desanimam ainda mais de aprender essa bela composição de nosso ilustre Duque Estrada, que, cheio de boas intenções, visionou em relação ao Brasil uma pátria de liberdade, igualdade e paz. Pena que essa terra, muitos brasileiros não a tenha conhecido, e por isso, nem todos podem cantar com verdade tão belos versos!
No entanto, como bons patriotas, os brasileiros, servis e submissos, em voz uníssona cantam em louvor á pátria mãe, á despeito de seus desencantos. E cada qual a seu modo, vão fazendo como podem: Ora cantando, ora improvisando. Mas, certo é, que todos tentam! Mesmo aos tropicões, pausando disfarçado quando a letra lhe foge á memória (ou talvez nunca estivessem lá) ou, dando espaço ao som instrumental para que lhes encubra as entradas bruscas fora de compasso. E assim, aos “trancos e barrancos”, o Brasil abre o peito em canto nacional, seja por orgulho ou por uma oportunidade, ao menos nesse momento, de sentirem-se realmente brasileiros.
E em meio ao coro seleto dos “alguéns” e “ninguéns” do nosso Brasil, quais estátuas de pedra, indiferentes a diferença gritante de classes sociais, escondem-se os líderes de nossa pátria verde-amarela; mais amarela que verde, devido à fome de comida e de justiça que sofre há tempos o nosso país. E o verde, só ficou no pano de nossa bandeira, pois a politicagem destruiu o verde-louro de nossas esperanças, e as queimadas, aos poucos, vão fazendo nosso Brasil virar cinza.
Mas lá estão nossos regentes com suas hipocrisias e seus bolsos e até cuecas recheadas com nosso dinheiro, e mesmo assim, fitam seriamente nosso lema de “ORDEM E PROGRESSO”, como se nossa terra estivesse em plena ordem e nossa pátria avançando progressivamente.
E, ainda assim, com a mão levada ao peito, erguem suas faces de cedro e cantam como surdos, sem poder ouvir a própria voz: “E se ergues da justiça a clave forte...”- Entoam indiferentes as palavras da música.
Mas, certamente, entenderiam o espírito da letra entoada, se tirassem a mão do peito e por um instante levassem-na à consciência.
Mesmo assim, feio ou bonito, o Brasil canta! Seja na voz do eloquente cidadão, que ostenta seu português refinado, encantando os ouvintes enquanto ávido canta: ”Ouviram do Ipiranga as margens plácidas...”, ou na voz enrustida dos “Zé Ninguém” “desta terra mais garrida”, cujo português tão pobre quanto eles, saltam de suas bocas com a mesma dificuldade com que enfrentam a vida, mas com o mesmo vigor de um coração apaixonado: “Ouviram do Ipiranga- soltam a voz, orgulhosos - as margens “prácidas”...E aí, nossos irmãos periféricos, cantam erradamente, destacando-se entre as vozes polidas e buscando sentir-se parte desse povo heróico .
E assim, segue a cantoria nacional, apresentada por um gigantesco coral, de entendidos e leigos, de doutores e indoutos, de ricos e pobres. E longe da sabedoria escolástica, trazendo na bagagem apenas o conhecimento comum adquirido no dia-a-dia, o povo brasileiro da ralé, a classe baixa da sociedade, não se cala, mas continua cantando e improvisando o nosso hino nacional, na humilde concepção de que, sendo hino da nossa pátria, todo cidadão reconhece sua letra.
E assim, de mãos ao peito, cantam os periféricos de nossa pátria, que apesar de nem sempre tê-los acolhido sobre seu chão, um dia há de recebê-los sob ele:
“ó pátria amada, idolatrada, salve, salve-nos!”

Leila Castanha
.